Saúde Ambiental e Saúde dos Trabalhadores: uma aproximação promissora entre o Verde e o Vermelho

17-06-2010 01:35

Revista Brasileira de Epidemiologia

 

Rev. bras. epidemiol. vol.6 no.4 São Paulo Dec. 2003

doi: 10.1590/S1415-790X2003000400013 

Saúde Ambiental & Saúde dos Trabalhadores: uma aproximação promissora entre o Verde e o Vermelho*

 

Environmental Health & Worker's Health: a promising approach between the Green and the Red

Saúde Ambiental & Saúde dos Trabalhadores: uma aproximação promissora entre o Verde e o Vermelho*

 

Environmental Health & Worker's Health: a promising approach between the Green and the Red

 

 

Raquel Maria Rigotto

Departamento de Saúde Comunitária, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará. Rua Prof. Costa Mendes, 1608 - 5º andar; 60416-200 Fortaleza - Ceará; raquelrigotto@terra.com.br

 

 


RESUMO

As relações entre saúde e ambiente e as possibilidades de uma aproximação teórica e prática entre os campos disciplinares da Saúde Ambiental e da Saúde dos Trabalhadores constituem o tema deste artigo. A primeira parte oferece uma visão panorâmica da relação saúde-ambiente, examinando algumas de suas abordagens e enfatizando o modo de produção e consumo e o modelo de desenvolvimento por ele delineado em cada sociedade como ponto-chave para a articulação entre as categorias trabalho, ambiente e saúde. Discute a identificação dos agravos à saúde relacionados ao ambiente e as dificuldades no estabelecimento destas relações, assim como alguns desafios epistemológicos e metodológicos que se apresentam para a investigação neste campo hoje. A segunda parte postula uma abordagem integrada entre produção, trabalho, ambiente e saúde, enquanto categorias fundamentais na definição do padrão de saúde e qualidade de vida da população, tendo como ponto de partida a incorporação sistêmica destas inter-relações nas políticas de desenvolvimento. A análise integrada dos processos produtivos na tríplice perspectiva de suas relações com o trabalho, o ambiente e a saúde é vislumbrada como um dos pontos de articulação das políticas públicas nestes campos, numa abordagem transetorial, transdisciplinar, democrática e participativa, em que Estado e sociedade ampliem a eficácia do controle dos processos produtivos.

Palavras-chave: Saúde Ambiental. Saúde dos Trabalhadores. Modo de Produção e Consumo. Desenvolvimento.


ABSTRACT

This paper addresses the relationships between health and environment and the possibilities of a theoretical and practical approach between the disciplinary fields of Environmental Health and Worker's Health. In the first part, it presents a panoramic view of the health-environment relation, examining some of its approaches. This overview emphasizes the production and consumption mode, and the development model it determines in each society, as a key-point to relate work, environment and health. It discusses the identification of the adverse effects to health related to the environment, and the difficulties in establishing these relations, as well as some epistemological and methodological challenges present the research in this area today. The second part suggests an integrated approach between production, work, environment and health, as basic categories to define quality of life and health standards for the population, based on the systemic incorporation of these categories into development policies. The integrated analysis of productive processes is examined from the perspective of its threefold relations with work, environment and health, as one of the points for combining public policies in these fields, in a trans-sectorial, trans-disciplinary, democratic and participative approach, in which the State and society expand the effectiveness of the control of productive processes.

Key Words: Environmental Health. Worker's Health. Production and Consumption Mode. Development.


 

 

Introdução

Muitos dos que nos formamos no campo da Saúde dos Trabalhadores no Brasil, estamos fazendo, nos últimos anos, um movimento (de ponte e potenciação) em direção à questão ambiental e suas relações com a saúde. Este movimento está em curso, por exemplo, em grupos da Fundação Oswaldo Cruz, da Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Desenvolvimento de Lideranças, e de Universidades federais como a do Rio de Janeiro, da Bahia, Minas Gerais, Ceará, Pernambuco, entre outras, assim como em sindicatos, movimentos de economia solidária, ONG's ambientalistas etc.

Sem pretender falar em nome destes grupos — cuja riqueza e diversidade superam em muito o escopo deste artigo — mas com base em idéias por eles desenvolvidas, proponho-me a apontar as linhas gerais de uma compreensão das relações saúde-ambiente que, longe de esgotar o tema, pretende convidar à aproximação teórica e prática entre os campos da Saúde Ambiental e da Saúde dos Trabalhadores, numa perspectiva integradora e transdisciplinar.

 

I. As Relações Ambiente e Saúde

A origem da vida aconteceu — e a evolução de nossa espécie está acontecendo — em íntima interação com o ambiente do planeta. Seria desnecessário lembrar isto se a cultura das sociedades capitalistas ocidentais não tivesse conseguido realizar, no plano simbólico, uma cisão tão profunda entre os seres humanos e o ambiente, fazendo-nos perder de vista a complexidade e também a poesia desta relação, ao mesmo tempo em que viabiliza a dominação da Natureza e também dos homens e mulheres.

A luz que nos vem do Sol, por exemplo, é filtrada por gases como o ozônio, o nitrogênio e o dióxido de carbono, para nos proteger de radiações nocivas, incompatíveis com a vida. A porção que dela nos chega aquece a superfície da terra em cerca de 30 °C — o efeito estufa natural, que também propicia a vida. Esta mesma luz é absorvida pelos vegetais e, através da fotossíntese (luz do sol, que a folha traga e traduz em verde novo, em força, em graça, em luz, no dizer de Caetano) constitui-se em nossa fonte primeva de energia, na cadeia alimentar.

As relações entre ambiente e saúde são amplamente reconhecidas: "o ar que respiramos, a água que bebemos, o alimento que comemos determinam nossa qualidade de vida"1; "a sobrevivência e a qualidade da vida na Terra dependem do funcionamento de uma série de ciclos e sistemas da Natureza"2; "em última análise, a saúde do homem depende da capacidade da sociedade de gerir a interação entre as atividades humanas e o ambiente físico e biológico"3.

O ambiente — vivo e propiciador da vida — apresenta também ameaças. Algumas delas são naturais — embora possam ser influenciadas pela ação antrópica, pelo menos em suas conseqüências — como os terremotos, vulcões, tornados, inundações. Outras ameaças — crescentes e que põem em risco a manutenção da vida no Planeta — devem ser debitadas na conta da intervenção da sociedade sobre a Natureza e, por isso, exigem de nós uma profunda reflexão.

Os aportes do marco causa-efeito proposto pela OMS

No esforço de compreender estas últimas, a Organização Mundial da Saúde4 desenvolveu um "marco causa-efeito para a saúde e o ambiente"**, que relaciona:

  • Forças-motrizes: as responsáveis pela criação das condições nas quais se podem desenvolver ou evitar distintas ameaças ambientais para a saúde. Estão consignadas nas políticas que estabelecem as linhas mestras do desenvolvimento econômico, tecnológico, dos padrões de consumo e do crescimento da população. São elas: população, urbanização, pobreza e desigualdade, avanços técnicos e científicos, pautas de produção e consumo, desenvolvimento econômico. Elas exercem ...

  • Pressões sobre o meio ambiente, como a urbanização; a super-exploração, contaminação e desigualdade na distribuição da água; a disputa pela terra, a degradação do solo e as mudanças ambientais decorrentes do desenvolvimento agrícola; a industrialização, que, embora traga melhores perspectivas, tem conseqüências desfavoráveis, como as emissões, os resíduos, a utilização de recursos naturais, os acidentes industriais maiores; a energia — em que o uso doméstico de biomassa e carvão ameaçam a qualidade do ar em ambientes fechados; as centrais térmicas, as indústrias e os meios de transporte que usam combustíveis fósseis e contaminam o ambiente; e as hidrelétricas que provocam deslocamento de populações e causam mudanças ecológicas; além da energia nuclear. Estas pressões podem produzir mudanças no ...

  • Estado do meio ambiente, alterando a qualidade do ar ambiental urbano, contaminando o ar das moradias; expondo a radiações ionizantes; gerando resíduos domésticos; contaminando ou promovendo acesso desigual à água, ou facilitando a transmissão de doenças transmitidas por vetores relacionados com a água; contaminando biológica ou quimicamente os alimentos; degradando o solo; trazendo problemas relacionados à habitação — escassez, confinamento, qualidade dos materiais; acidentes e lesões; trazendo exposições nos locais de trabalho; e, finalmente, gerando mudanças ambientais de impacto global, como as mudanças climáticas, o esgotamento da camada de ozônio, a contaminação atmosférica transfronteiriça e o movimento dos resíduos perigosos; além do problema das exposições combinadas procedentes de distintas fontes. Para que este estado alterado do ambiente exerça algum efeito sobre a saúde humana, entre outros fatores, tem que haver a ...

  • Exposição, enquanto interação entre o ser humano e o perigo ambiental. Desta exposição vão resultar ...

  • Efeitos sobre a saúde, que variarão em intensidade, magnitude e tipo de acordo com a natureza do perigo, o nível de exposição e o número de afetados. Eles atuam junto com os fatores genéticos, a nutrição, os riscos ligados ao estilo de vida e outros fatores para provocar a doença. São eles: as infecções respiratórias agudas, as doenças diarréicas, as preveníveis por vacinação, as doenças tropicais transmitidas por vetores e as doenças emergentes, os acidentes e intoxicações — ocupacionais ou não; as alterações de saúde mental relacionadas a fatores físicos, químicos e psicossociais; as doenças cardiovasculares; o câncer — de origem ocupacional, por agentes infecciosos, por contaminantes do ar, da água ou dos alimentos, as radiações ionizantes e não-ionizantes, os fumos de tabaco; as doenças respiratórias crônicas, alergias, problemas de saúde da reprodução.

Cada um destes pontos da cadeia pode desencadear...

• Ações destinadas a controlar e prevenir os efeitos nocivos para a saúde, ações estas que podem influir, por sua vez, nos distintos pontos da cadeia, sendo que as mais efetivas são aquelas que modificam as forças motrizes.

O diagrama 1 sintetiza este marco.

Print version ISSN 1415-790X

 

 

 

Esta estrutura explicativa avança em relação às tradicionais abordagens unicausais, restritas à equação risco-dano, ao reconhecer a mediação de forças motrizes situadas num plano mais macro da formação social e responsáveis pela geração de pressões que alteram o estado do ambiente, criando as condições para a exposição humana a fatores de risco e para a instalação de agravos à saúde. Indubitavelmente, esta abordagem amplia os horizontes da ação sobre as ameaças ambientais.

A perspectiva da Epidemiologia Social e o modo de produção

O enfoque trazido pela epidemiologia social, por seu turno, contrapõe a certa linearidade intrínseca a este modelo5,6 uma visão mais dinâmica e histórica da relação sociedade-ambiente, centrada no modo de produção: "O processo saúde-doença é determinado pelo modo como o Homem se apropria da natureza em um dado momento, apropriação esta que se realiza por meio do processo de trabalho, baseado em determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção"7.

Tambellini & Câmara8 também defendem que a questão da saúde aponta para o plano das relações entre produção e ambiente: a lógica da sociedade penetra na natureza, através dos processos produtivos, e a "desnaturaliza", distribuindo possibilidades diferenciadas de exposição dos indivíduos e seus coletivos a agentes, cargas e riscos que podem conduzir a processos mórbidos.

Na mesma linha, Berlinguer9 afirma que todo o perfil de adoecimento e morte de uma população poderia ser interpretado no contexto da relação sociedade-natureza. Ele defende que a doença é sinal da alteração do equilibro homem-ambiente, produzida por transformações produtivas, territoriais, demográficas e culturais.

A concepção oferecida pela Epidemiologia Social fornece as pistas para um encontro dos campos disciplinares da saúde ambiental e da saúde dos trabalhadores, articulados, no plano teórico, por uma visão sistêmica da relação sociedade-natureza e pela centralidade do modo de produção*** — que delineia o modelo de desenvolvimento de cada sociedade — no desenho do processo saúde-doença.

Desenvolvimento e ambiente no capitalismo avançado

De fato, na trajetória de intervenção técnica da sociedade sobre a natureza e do desenvolvimento econômico, os riscos ambientais modificam-se em sua natureza, magnitude, intensidade, distribuição, nocividade: os problemas de saneamento básico da agricultura de subsistência; a degradação do solo e o uso de produtos químicos na agricultura intensiva e de grande escala; a extração de matérias primas, o consumo de água e energia, a contaminação da água, do ar e do solo relacionados à industrialização são apenas alguns exemplos.

Vale enfatizar que o desenvolvimento veio a se constituir como ideologia do capitalismo, a qual nasceu e se expandiu junto com a burguesia, a partir do século XIV. Esta significação imaginária social é, segundo Castoriadis10, a de que o crescimento ilimitado da produção e das forças produtivas é, de fato, o objetivo central da vida humana. Nela, desenvolvimento é a progressão em direção à maturidade, à capacidade de crescer sem fim, colocada como norma natural. Por outro lado, Marx postula que o desenvolvimento nas sociedades capitalistas depende da expansão permanente da acumulação, sendo contraditório por gerar, simultaneamente, a ampliação dos meios de produção e a deterioração das condições de vida dos trabalhadores, assim como do ambiente, na leitura que dele faz Lowy11.

No momento atual, em que o capitalismo avança na mundialização e na reestruturação da produção, as relações saúde-trabalho-ambiente tornam-se mais complexas. Há fortes indícios de uma tendência seletiva na localização socioespacial dos processos produtivos. Os países "desenvolvidos" do hemisfério Norte — pressionados pela sociedade e pelo Estado a uma reforma ecológica — estariam exportando riscos para os países "subdesenvolvidos" ou "emergentes" do Sul. Aqueles processos mais consumidores de recursos naturais, mais geradores de poluentes e que se caracterizam por processos de trabalho mais insalubres e perigosos — a "indústria suja" — tenderiam a se localizar em alguns locais: os que apresentem legislações ambientais e trabalhistas menos rigorosas; em que o aparato institucional de vigilância não tenha condições de fazer valer as políticas consensadas; em que a população e os trabalhadores estejam fragilizados pelas precárias condições de vida e dispostos a "aceitar qualquer coisa" em troca de uma fonte de renda; em que a sociedade civil não esteja suficientemente informada e organizada para defender seus interesses12-15.

É que fazem parte do processo de Globalização e de Reestruturação Produtiva o crescimento e a concentração de poder dos agentes econômicos, invadindo esferas reservadas ao Estado na modernidade. Este, por sua vez, é pressionado pelas forças neoliberais a se reduzir em sua função social e pública e, ao mesmo tempo, a ampliar sua subordinação aos interesses econômicos. O pacto social tecido no pós-guerra, que resultou na construção do Estado de bem-estar social nos países considerados desenvolvidos, também está profundamente ameaçado. No mundo do trabalho, neste momento, vive-se uma profunda crise, cujas saídas ainda estão sendo buscadas.

Assim, este é um contexto que cria condições para aprofundar e ampliar os impactos negativos do processo de desenvolvimento, no capitalismo avançado, sobre o trabalho, a saúde e o ambiente, particularmente pelo enfraquecimento de dois atores sociais fundamentais até então: o Estado e as organizações dos trabalhadores. O alento vem, sem dúvida, da emergência e da expansão internacionalizada do movimento ambientalista, que tende a integrar em suas pautas lutas pela democratização da sociedade, pela ampliação da participação na esfera pública, pela defesa de direitos de cidadania, direitos humanos, sociais e de terceira geração (gênero, étnicos etc), qualidade de vida, defesa da diversidade cultural, da integração sociocultural, da seguridade e da paz16.

Entre lombrigas e metais pesados...

Dada a desigualdade entre os países "desenvolvidos" e os demais, particularmente no tocante ao nível de industrialização, seria possível falar, de um lado, de acordo com a OMS4, em "perigos tradicionais", como a falta de acesso à água potável, saneamento básico deficiente nas moradias e na comunidade, contaminação dos alimentos por organismos patógenos, contaminação do ar interior pelo uso de carbono ou combustíveis de biomassa para aquecimento e cozinha, sistemas insuficientes de eliminação de resíduos sólidos, riscos de acidentes de trabalho na agricultura e indústria domésticas; catástrofes naturais, como inundações, terremotos, secas; vetores de doenças, especialmente insetos e roedores.

Por outro lado, haveria os "perigos modernos, que têm relação com um desenvolvimento rápido, que não leva em conta as salvaguardas para a saúde e o meio ambiente, e com um consumo insustentável dos recursos naturais" (p. 7-8). Seriam eles: contaminação da água pelos núcleos de população, indústria e agricultura intensiva; contaminação do ar urbano pelas emissões de motores de veículos, centrais energéticas e indústria; acumulação de resíduos sólidos e perigosos; riscos químicos e por radiação devidos à introdução de tecnologias industriais e agrícolas; risco de doenças infecciosas novas ou emergentes; desflorestamento, degradação do solo e outras mudanças ecológicas importantes nos níveis locais e regionais; mudança climática, esgotamento da camada de ozônio da estratosfera e contaminação transfronteiriça.

É importante salientar que estes "perigos modernos" têm sua gênese principalmente nos processos produtivos — particularmente os de natureza industrial — nos padrões de consumo que o modo de produção capitalista impõe e nas aglomerações urbanas que eles induzem, para atender às suas necessidades de força de trabalho e infra-estrutura.

Assim, as unidades produtivas podem ser consignadas como centros geradores de transformações ambientais e culturais, no processo de desterritorialização e reterritorialização17 que promovem, e difusores de fatores de risco que podem comprometer a saúde de seus trabalhadores, dos habitantes de seu entorno, e da população em geral, como veremos adiante.

Mas o mesmo documento da OMS4 alerta: "Nos países em desenvolvimento, os riscos modernos do desenvolvimento aparecem antes que os riscos tradicionais da pobreza tenham sido reduzidos de forma significativa. Com respeito a algumas comunidades, pode-se afirmar, portanto, que vivem no pior de ambos os mundos." (p. 43)

Esta superposição dos perfis de riscos reflete-se, obviamente, no processo saúde-doença dos países em desenvolvimento, inclusive do Brasil: "Ao se estudarem as causas de morte na população brasileira, é interessante observar que, progressivamente, e acompanhando o processo de industrialização, há uma substituição gradativa, porém não completa, da contribuição das doenças infecto-contagiosas pelas doenças cardiovasculares, pelos tumores e pelas 'causas externas' ou mortes violentas, representadas pelos acidentes de trânsito, homicídios e acidentes de trabalho, como causa de morte. A análise deste quadro sugere que, no modelo de desenvolvimento adotado para o país, não foram superadas as condições de vida próprias da pobreza e do subdesenvolvimento, mas apenas acrescentados novos riscos e novas formas de morrer, caracterizando um duplo perfil de morbi-mortalidade"18.

Em contraste, na Europa do pós-guerra, por exemplo, como conseqüência do pacto social que conformou o Estado de bem-estar, houve declínio rápido e acentuado das "doenças do subdesenvolvimento", como as infecciosas, parasitárias, diarréicas e as transmitidas por vetores ou pela desnutrição; reduziu-se a mortalidade infantil e elevou-se a expectativa de vida. Por outro lado, ampliou-se a participação das chamadas "doenças do desenvolvimento", mencionadas acima, entre as causas de morte da população.

Identificando os problemas de saúde relacionados ao ambiente

Os impactos dos problemas ambientais gerados pelos processos de produção e consumo sobre a saúde humana podem se manifestar sob a forma de eventos agudos, como no caso dos acidentes industriais ampliados — o de Seveso, Chernobyl, Bhopal, Vila Socó e centenas de outros — que causam mortes, lesões corporais, intoxicações, e também efeitos crônicos, particularmente sobre o aparelho respiratório, cânceres e malformações congênitas. De acordo com Freitas19, se até os anos 70 estes acidentes ocorreram predominantemente nos países centrais, a partir de então eles se deslocam para os países periféricos: Índia, Brasil e México registraram os acidentes mais graves em termos de óbitos imediatos, no que assumiram a liderança mundial.

Além disso, as fontes locais de poluentes podem gerar contaminações ambientais que venham a causar intoxicações crônicas na população local, por exposição prolongada a concentrações variadas de diferentes poluentes. O Japão nos oferece dois exemplos, ocorridos ainda nos anos 50 e 60 do século passado, quando mais de 2.200 pessoas se intoxicaram pelo metil-mercúrio despejado por uma fábrica de fertilizantes, ao longo de anos, na baía de Minamata: o metal contaminou peixes e frutos do mar que alimentavam a população da cidade. Também o cádmio, liberado entre os efluentes de uma fundição de metais situada na bacia do rio Jinzu, gerou 116 mortes por intoxicação — as águas do rio eram usadas para a irrigação de arrozais20.

As fontes locais de poluentes podem ainda ter efeitos sobre a saúde cuja abrangência supera o entorno imediato. Um grande número de fontes locais, difundindo-se pelo ar, água ou solo, ou mesmo por dutos transportadores, atuam de forma cumulativa e podem levar, por exemplo, à perda da biodiversidade ou à degradação do solo e, por via indireta, causar diferentes impactos sobre a saúde da população de uma região, ao comprometer os alimentos ou as fontes de água potável. Podem também contaminar o solo com a disposição inadequada de resíduos, ou o ar com monóxido de carbono, óxidos nitrosos, dióxido de enxofre e material particulado sólido, refletindo-se em elevação das taxas de morbidade e mortalidade por doenças dos aparelhos respiratório e circulatório, particularmente em grupos populacionais mais suscetíveis, como as crianças, os idosos e os asmáticos21-23.

É possível ainda a geração de efeitos observáveis em nível regional ou global, remotamente em relação às fontes locais e mediados por processos complexos da biosfera, como nas mudanças ambientais globais — as alterações climáticas ou o excesso de radiação ultravioleta devido à depleção do ozônio estratosférico, por exemplo24.

No ambiente de trabalho, novas tecnologias e novas relações de trabalho trazem novos valores, novos hábitos e introduzem novos riscos tecnológicos, de natureza física, química, biológica, mecânica, ergonômica e psíquica. Estes, e de forma simplificada, podem causar acidentes do trabalho e doenças relacionadas ao trabalho.

O acidente de trabalho tem o caráter de um evento agudo, que causa lesão corporal ou perturbação funcional, como seria o caso de uma amputação de dedos ou de uma intoxicação aguda por agrotóxico, ou mesmo dos acidentes ocorridos no trajeto do trabalhador entre sua residência e o local de trabalho.

Por seu turno, as doenças relacionadas ao trabalho manifestam-se de modo insidioso — como as intoxicações por substâncias químicas, a perda da audição, dermatoses, lesões por esforços repetitivos, e incluem ainda sofrimento psíquico, desgaste, doenças crônico-degenerativas e alterações genéticas que podem se manifestar em câncer ou alterações da reprodução. Em 1999, os Ministérios da Saúde e da Previdência Social no Brasil elaboraram uma lista que discrimina 210 patologias reconhecidas como relacionadas ao trabalho25.

A estimativa da Organização Internacional do Trabalho para o mundo no ano 2000 referiu-se a dois milhões de acidentes de trabalho fatais, sendo que a cada um deles correspondem entre 500 a 2000 acidentes, de acordo com o tipo de atividade. As doenças do trabalho acometeram 160 milhões de trabalhadores. Os dados publicados pela Organização Panamericana de Saúde26, mostram que, na América Latina e Caribe, ocorrem 36 acidentes de trabalho por minuto ou 5 milhões ao ano, resultando em 90.000 mortes. Já as doenças relacionadas ao trabalho são notificadas em apenas 1 a 5% dos casos, de acordo com o país. No Brasil, os dados relativos aos 20.374.176 trabalhadores celetistas, cobertos pelo Seguro de Acidentes de Trabalho da Previdência Social, em 2000, mostram a ocorrência de 343.996 acidentes, 14.999 dos quais resultaram em incapacidade total e permanente e 3.094 em óbito27.

No esforço de quantificar os impactos das alterações ambientais sobre a saúde, a OMS calculou o peso dos fatores ambientais na carga mundial de doenças, com base no índice AVAI — anos de vida ajustados em função da incapacidade. Assim, afirma que 23% da carga total mundial de AVAI está associada a fatores ambientais, chegando a 90% nas doenças diarréicas e na malária, 60% nas infecções respiratórias agudas, 50% nas doenças respiratórias crônicas, 30% nas lesões não-intencionais, 25% no caso do câncer e 10% nas doenças cardiovasculares, assim como nos agravos de saúde mental4.

Estes números, por si só já bastante reveladores da relação saúde-ambiente na sociedade contemporânea, certamente seriam ampliados se avaliados a partir de um marco conceitual mais abrangente e capaz de tratar problemáticas complexas como esta. É que, na abordagem da OMS, o ambiente muitas vezes é reduzido aos seus elementos físicos, químicos e biológicos, sem contemplar a complexidade do socioambiente. Por isso, consideram questões como estilo de vida, o hábito de fumar ou o consumo de drogas, o estresse e o padrão alimentar como externas aos fatores ambientais, e competindo ou se associando a eles na explicação da gênese das doenças. Isto permite entender porque às doenças cardiovasculares, que lideram as listas de causa de morte e também de AVAI em todo o mundo, foi atribuída uma participação de apenas 10% de fatores ambientais — reduzidos aqui ao monóxido de carbono, às temperaturas extremas, às infecções, ao chumbo e ao arsênico e à contaminação do ar com material particulado. Numa outra perspectiva, ainda em construção, seria possível questionar as inter-relações entre o modo de vida urbano-industrial — que articula sedentarismo, fast food, estresse no trânsito, no trabalho e nas relações interpessoais; cigarro e bebida alcoólica; migração e mudanças culturais — com a ascensão das doenças cardiovasculares, e enquanto um problema do ambiente urbano, relacionado ao modelo de desenvolvimento adotado na sociedade. Assim também para diversos outros agravos, como os relacionados à violência urbana, à saúde mental ...

Algumas dificuldades

De fato, o estabelecimento destas relações não é simples hoje, no plano científico, particularmente no que se refere ao ambiente externo aos processos produtivos:

Os links entre saúde e ambiente são complexos ...1

Freqüentemente é muito difícil identificar relações causa-efeito. A saúde da população, especialmente dos grupos mais vulneráveis, como as crianças, os idosos e os doentes, está em risco pela poluição do ar, mas é difícil dizer a magnitude do risco. Há consideráveis incertezas em estimar tanto as exposições como os efeitos e suas relações21.

Os exemplos indiscutíveis de doenças causadas por uma exposição a produtos químicos na população geral são raros3.

Diferentemente das relações saúde/doença e trabalho, neste campo a escala espacial e a população exposta são bastante ampliadas e variadas, podendo haver efeitos locais e também remotos; estes efeitos vão se manifestar em pessoas de diferentes idades — crianças, jovens, adultos e idosos; as condições socioeconômicas das pessoas atingidas também podem ser distintas; as fontes de poluição são dispersas e variadas, e a exposição a elas ocorre em baixas doses, mas por tempo prolongado, já que o local de exposição é o de moradia; além da via respiratória de absorção de tóxicos, ganha importância ainda a via digestiva, pela possibilidade de ingestão de água e alimentos contaminados8.

O conhecimento sobre estas relações é construído com base em três tipos de estudos:

  • estudos experimentais, necessários para avaliar a segurança de agentes físicos e químicos e para compreender como predizer e prevenir os efeitos nocivos à saúde e ao ambiente.

  • extrapolações a partir das exposições no ambiente de trabalho, que permitem identificar os riscos mais graves para uma população maior, já que a identificação de problemas graves entre os trabalhadores de uma indústria é um sinal de alarme para uma população maior.

  • estudos epidemiológicos — custosos e longos, particularmente quando se dedicam a estudar efeitos sobre a saúde pouco importantes ou de evolução longa. Sua sensibilidade aumenta quando o campo é restringido a populações conhecidas por sua sensibilidade — asmáticos, crianças, idosos3.

Com estes instrumentos, o estabelecimento das relações doença-ambiente seguiria pelas etapas definidas no "marco causa-efeito para a saúde e o ambiente" proposto pela OMS. Seguindo um roteiro oferecido por Barcelos6 para se caminhar em cada uma daquelas etapas, podemos constatar, com base em documentos da Agência Européia de Meio Ambiente21 e da Organização Mundial de Saúde3,22, algumas das dificuldades para estabelecer as relações entre alterações da saúde e ambiente.

  • A falta de inventários de fontes de contaminação, que possibilitariam a avaliação das pressões exercidas sobre o ambiente.

  • A oscilação dos níveis de contaminação ambiental, que permitiriam avaliar o estado do ambiente: variações anuais, sazonais, semanais ou diárias dos ciclos de atividade das próprias fontes emissoras, ou pela influência e variação dos diversos fatores que compõem o clima. Além disso, contaminantes atmosféricos, por exemplo, passam por complexos processos de dispersão, em que podem se diluir, acumular, depositar, sofrer transformações químicas, reagir com outros poluentes e contaminar outros meios, como a água, o solo, organismos vivos e alimentos. Tudo isto faz com que seja muito difícil medir poluentes, estabelecer padrões ou identificar tendências de contaminação.

  • A exposição é avaliada a partir de medições baseadas no indivíduo, realizadas, por exemplo, através da análise de biomarcadores. Entretanto, a exposição humana total a um contaminante vai variar de acordo com o tempo que cada um passa no ambiente externo, no trabalho e em casa; da capacidade do poluente de penetrar no ambiente doméstico; e da localização da moradia em relação às fontes de poluição — em que vai entrar em jogo a distribuição socioespacial dos fatores de risco, já que normalmente os mais pobres vivem em áreas mais degradadas. É bom lembrar ainda que, em muitos casos, a exposição pode ocorrer simultaneamente a diversos poluentes diferentes, que podem interagir entre si. A absorção pode se dar por uma ou por várias vias — respiratória, cutânea ou digestiva, sendo influenciada por hábitos e pela suscetibilidade individual. Isto significa que a medida da exposição vai variar de acordo com quando, onde e por quanto tempo se fez o monitoramento. Considere-se ainda que não há indicadores biológicos estabelecidos para a maioria dos agentes nocivos em uso nos processos produtivos, que estas análises freqüentemente apresentam altos custos e sua interpretação nem sempre é simples.

  • Os agravos à saúde são captados por documentos que registram o adoecimento, a internação, ou o óbito em sistemas de informação específicos, permitindo relacionar a informação sobre a exposição de uma população a um contaminante com seus efeitos adversos, através do conhecimento científico disponível sobre esta correlação. Mas isto não é simples. Os estudos epidemiológicos para estabelecer a prevalência de algumas doenças ainda são muito limitados, inclusive na Europa, devido aos custos e recursos necessários para se conduzir este tipo de pesquisa. Por outro lado, as reações adversas a um contaminante podem assumir uma ampla gama de formas, que vão desde desconforto físico ou psicológico, passam por alterações fisiológicas de difícil interpretação, por doenças clínicas de intensidade variável, até a morte. Há que se considerar ainda que muitas das doenças com possível associação ao ambiente são de etiologia multicausal, ou seja, podem estar associadas a vários fatores e suas inter-relações. Some-se também o escasso conhecimento disponível sobre os efeitos adversos à saúde que podem ser causados por várias substâncias químicas já em uso nos processos produtivos, ou sobre as repercussões das exposições a baixas doses, ou das exposições simultâneas a múltiplos contaminantes, cuja ampliação depende de estudos com exposição controlada de grupos humanos ou de animais. Considere-se ainda que as respostas à exposição ambiental podem variar de acordo com a suscetibilidade de cada indivíduo, relacionada à idade, estado nutricional, predisposição genética, estado geral de saúde, comportamento e estilo de vida etc. E que algumas patologias podem ter um largo tempo de latência para se manifestar, como, por exemplo, o câncer pulmonar causado pelo amianto, que é diagnosticado, em média, 20 anos após a exposição.

Assim, a despeito dos avanços na produção de conhecimento nas últimas décadas, particularmente na área da epidemiologia, ainda há muita incerteza no campo das relações saúde/doença-ambiente, especialmente quando se trata de afirmar correlações ou de medir impactos das condições do ambiente sobre a saúde.

Ciência e ação

Nesta perspectiva, é sempre apontada a necessidade de novas pesquisas e de mais estudos, e do adequado suporte financeiro para sua realização. Esta questão já teria relevância por si própria, caso se tratasse apenas de um problema de conhecimento científico. Mas, como a ciência não está desvinculada do contexto histórico-social, esta lacuna tem sérias repercussões políticas, na medida em que pode corroborar ou legitimar a postergação da ação preventiva, que implicaria em mudanças nos processos produtivos e de urbanização, nos investimentos, e inclusive no modelo de desenvolvimento, às quais os agentes sociais geradores de risco obviamente resistem.

Talvez por isto o diretor da Agência Européia de Meio Ambiente tenha questionado, em seu discurso na abertura da Third Ministerial Conference on Environment and Health, "quanto conhecimento será suficiente para desencadear a ação preventiva", ao considerar que o custo de um teste de contaminação por dioxina em um ovo de galinha atinge algumas centenas de euros, ou que o teste de toxicidade de apenas uma das milhares de substâncias químicas no ambiente custa 5 milhões de euros1.

Ao se confrontarem com este problema, os documentos oficiais, além de reafirmarem a necessidade de novas pesquisas — particularmente os estudos epidemiológicos em que a abordagem factor-by-factor possa ser suplementada com uma avaliação abrangente da combinação de fatores ambientais, ocupacionais, de estilo de vida, sociais e pessoais; enfatizam a importância da avaliação de riscos, da implantação de programas de monitoramento ambiental pelas autoridades locais, da construção do aparato legal e institucional para o controle da ação antrópica sobre o ambiente. Mas alertam:

  • O Princípio da Precaução precisa ser adotado, também para evitar maiores custos no futuro1.

  • Considerando as incertezas inerentes à avaliação de riscos, é aconselhável a adoção do princípio da precaução da ação preventiva 21 .

  • É importante enfatizar que a política de saúde ambiental deve estar focada na prevenção da exposição a riscos ambientais e na redução de seus efeitos sobre a saúde22.

Embora estas diretrizes pareçam suficientes para conduzir os problemas atualmente vividos pela sociedade no campo saúde/doença e ambiente, cabe lembrar que vivemos numa sociedade marcada pelo positivismo, que demanda evidências, valores, medições, avaliações quantitativas, enfim, números para justificar mudanças de prioridades ou do modo de agir, como bem expressa esta frase: "o monitoramento permite às autoridades locais confirmar suposições prévias de que os níveis de poluição estão inaceitavelmente altos; ele também permite a elas estabelecer prioridades de acordo com os recursos disponíveis e com a relação custo-benefício de algumas ações"22.

Mas, considerando o número, a variedade e a magnitude das dificuldades acima apontadas, cabe perguntar se estamos no caminho certo, se vale a pena continuar investindo apenas nesta abordagem, se reunir um maior volume de estudos ou avaliar grupos populacionais maiores vai nos levar às respostas que buscamos. Em outras palavras, trata-se de um problema exclusivamente metodológico, ou há uma questão epistemológica subjacente a todas estas dificuldades? No campo da ciência, que caminhos alternativos são hoje vislumbrados?

Akerman apoia-se em Funtowicz, Ravest e Morin para afirmar que os instrumentos tradicionais da "ciência normal" são insuficientes para desenvolver quadros explicativos e de intervenção relacionados aos problemas ambientais e à desigualdade social e econômica entre povos, regiões e grupos populacionais. Defende que é necessário redefinir o objeto de estudo e a metodologia, incorporando diálogos mais interativos e ampliados com uma gama maior de saberes e atores28.

Na trilha de Maturana, Samaja, e também de Morin, Augusto29 considera que é necessário o pensamento complexo, "... que permite escapar da visão mecânica, determinista, de causalidade linear. Para que haja uma interpretação dos fatos, há que se buscar a interação das unidades complexas de que são constituídos. A dialógica é um importante princípio a ser adotado para esse pensar complexo. (...) Sua construção implica a participação efetiva da população em todos os estágios de sua criação." (p. 304).

Barcelos6 inspira-se em Breilh para defender "uma abordagem sistêmica de grupos sociais e ambiente, numa relação complexa e historicamente construída, mediada por fatores sociais, políticos e culturais." (p. 315).

Entretanto, do ponto de vista metodológico, estas abordagens ainda têm um longo caminho a percorrer, na visão de Rolando García30: "Os estudos sobre a problemática ambiental evidenciaram, de maneira reiterada, a insuficiência das metodologias tradicionais (ou, mais exatamente, do que tradicionalmente se entende por metodologia) para realizá-los. Dali a elaborar propostas concretas que constituam verdadeiras alternativas para realizar estes estudos, e que reunam, além disso, a indispensável condição de serem operativas, quer dizer, de traduzir-se em procedimentos mais ou menos precisos que orientem as investigações, há um longo caminho cheio de dificuldades. Como ocorre em todos os campos, é mais fácil colocar-se de acordo sobre o que devemos abandonar e superar em velhas práticas de investigação, do que concordar em uma proposta superadora." (p. 41)

Entretanto, apesar das dificuldades, muitas pistas estão se abrindo e sendo testadas por diferentes grupos de pesquisa que optam por esta perspectiva.

 

II. Por uma aproximação teórica e prática entre Saúde dos Trabalhadores e Saúde Ambiental

Os problemas ambientais que hoje ameaçam a humanidade são profundamente marcados pelas instâncias econômica, jurídico-política e ideológica do modo de produção capitalista. Os problemas de saúde da sociedade contemporânea — internos ou externos às unidades produtivas — também guardam estreitas relações com estas características de nossas formações sociais.

Para muitos dos que viemos do campo disciplinar da Saúde dos Trabalhadores, saltar o muro da fábrica e descobrir suas "coalescências" com o entorno tem sido um processo que abre muitas janelas: para além dos riscos ocupacionais, ver os recursos naturais que entram para ser consumidos, e os resíduos e efluentes que saem, muitas vezes, para contaminar; considerar as relações do just-in-time com o aumento do tráfego e, com ele, da contaminação do ar, dos acidentes de trânsito; compreender a questão da localização das atividades econômicas no espaço, desde o solo que ocupam, a fauna e a flora que expulsam, as alterações da paisagem, o rio, as transformações no espaço urbano, até a nova distribuição socioespacial dos riscos tecnológicos, no contexto internacional; perceber a relevância dos efeitos cumulativos e remotos das fontes industriais de contaminação ambiental; incorporar a discussão dos padrões de consumo, entre tantas outras janelas ... Enfim, estimulou-nos a pautar a questão da sustentabilidade dos processos produtivos, e a fazê-lo dentro da questão mais geral da sustentabilidade do processo de desenvolvimento.

Por outro lado, considerar o mundo do trabalho no debate da questão ambiental aprofunda, radicaliza e explicita a questão socioambiental. Se o Estado é já um ator freqüentemente pautado nesta discussão, aqui os agentes econômicos e os trabalhadores também têm que se fazer mais presentes. As implicações sociais e ambientais das inovações tecnológicas e organizacionais mostram suas marcas no corpo dos trabalhadores. Os riscos se realizam num contexto sociohistórico que pode modificar inclusive sua nocividade. A reestruturação produtiva e as desigualdades socioespaciais que promove vão ficando claras. Os caminhos para dar fim à pobreza e à fome vão ser buscados de outra forma.

Numa palavra, aprofundar as relações entre a "pauta verde" e a "pauta vermelha" e aproximar a Saúde dos Trabalhadores e a Saúde Ambiental pode ser um caminho promissor. Ainda que se mantenham como campos disciplinares distintos — ambos extensos mas também com muito em comum — podem se nutrir de uma mesma cosmovisão, de um olhar abrangente que contemple estas férteis e complexas inter-relações, para com ele iluminar a pesquisa, a formação dos profissionais, as políticas públicas e a ação política da sociedade.

Uma Política de Saúde, Trabalho e Ambiente?

Com as luzes dos avanços teóricos produzidos pela Epidemiologia Social desde o final dos anos 70, particularmente na América Latina, desencadeamos no Brasil o processo de Reforma Sanitária, marcado historicamente pela 8ª Conferência Nacional de Saúde e seus desdobramentos na Assembléia Nacional Constituinte e na criação do Sistema Único de Saúde.

A ênfase no processo de produção — colocado como categoria central por este novo pensamento — estimulou a expansão conceitual da "Saúde Ocupacional" para "Saúde dos Trabalhadores", paralela a um criativo esforço de concepção e implantação de políticas de saúde coerentes com o marco então emergente.

Paralelamente, a questão ambiental ganhava terreno na arena política nacional e internacional. O relatório Limites do Crescimento, encomendado ao Massachussetts Institute of Techonology pelo Clube de Roma, apontava os problemas ambientais decorrentes do modelo de desenvolvimento e que ameaçavam a humanidade, influenciando fortemente a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1972. O Relatório Brundtland, quinze anos mais tarde, tentava encontrar uma fórmula para conciliar crescimento econômico e preservação ambiental sob a insígnia polissêmica do desenvolvimento sustentável — discussão retomada na Rio-92 e, recentemente, em Johannesburg.

No campo da saúde ambiental no Brasil, abrem-se os horizontes para além do debate sobre o saneamento básico e as doenças infecto-contagiosas, enfocando problemas como os agrotóxicos, metais pesados, contaminação das águas para consumo humano, ambiente urbano, entre outros, dando os primeiros passos para o desenho de uma política de saúde ambiental que venha responder à complexa estrutura de nossa sociedade.

Por outro lado, entre distintos atores e segmentos sociais, cresce a compreensão de que todas as políticas de desenvolvimento devem estar permeadas pela preocupação com o trabalho, o ambiente e a saúde, de forma a gerar melhorias para a qualidade de vida da população como um todo — o que não é simples, por envolver grandes interesses econômicos e fortes grupos de poder, muitas vezes internacionalizados.

Esta opção política implica em inverter prioridades e criar, coletivamente, alternativas de desenvolvimento que sejam includentes, harmônicas com o ambiente, compatíveis com a saúde. Supõe, também, o aperfeiçoamento dos mecanismos regulatórios dos conflitos ambientais e de saúde, em que o Estado cumpra seu papel — regular, educar, estimular, fiscalizar, punir, informar, assistir — ao mesmo tempo em que amplia a participação da sociedade no controle dos processos produtivos, facilitada por instâncias democráticas que equilibrem o poder dos diferentes grupos e atores sociais e pela geração e difusão transparente de informações fidedignas.

Um exemplo de aperfeiçoamento destes mecanismos regulatórios dos conflitos ambientais e de saúde, na linha de uma abordagem integrada, pode ser pensado no tocante aos processos produtivos. A tendência atual, neste campo, é ir além das ações de controle de poluentes ou resíduos gerados e priorizar a prevenção em sua fase estrutural, como denominado por Porto31, e a exemplo do que propõe o Regulamento 96/61 da União Européia, sobre a prevenção e o controle integrados da contaminação32. A ênfase estaria na análise prévia do projeto tecnológico e organizacional das empresas — anterior à sua construção e operação, examinando os padrões de proteção ambiental e também de segurança e saúde no trabalho, para estabelecer as modificações necessárias no processo produtivo, visando evitar a geração de contaminantes e definir um programa eficaz de gestão de riscos.

Em alguns aspectos, este procedimento já está previsto na Lei 6.938/81, sobre a Política Nacional do Meio Ambiente33, e na Resolução CONAMA 1/86, sobre procedimentos relativos a Estudo de Impacto Ambiental34, e vem sendo executado pelo IBAMA e pelos órgãos estaduais e municipais de meio ambiente. Uma avaliação da eficácia desta política se faz necessária, incluindo a adequação do conjunto legal e dos recursos institucionais disponíveis, tanto técnico-instrumentais como humanos.

De qualquer forma, a legislação ambiental vigente no Brasil exige que grande parte dos empreendimentos seja submetida aos procedimentos de licenciamento ambiental, para o que deve apresentar documentação técnica contendo, entre outros, descrição do processo produtivo (matérias primas, processos e técnicas operacionais, produtos etc.), dos contaminantes gerados, as medidas de controle e os impactos ambientais previstos.

Por seu turno, o Ministério do Trabalho conta com o recurso do Certificado de Aprovação de Instalações — CAI, previsto na NR-2 da Portaria 3214/7835, na mesma perspectiva de uma análise dos processos produtivos prévia à sua instalação. Este instrumento, entretanto, não vem sendo utilizado sistematicamente pela instituição.

Uma idéia para a integração seria, a exemplo do que em parte vem sendo feito na Catalunha (Espanha), a partir da implantação da Lei de Intervenção Integral da Administração Ambiental, de 199836, integrar estes procedimentos num processo que envolvesse as dimensões — e as instituições — do trabalho, do ambiente e da saúde. A análise do processo produtivo a ser licenciado, assim como a definição das exigências a serem cumpridas pelo empreendedor, seriam feitas nesta tríplice perspectiva, tomando como base pareceres dos órgãos responsáveis em cada uma das áreas.

As informações geradas e reunidas neste processo alimentariam um banco de dados de acesso, alimentação e utilização comum por estes mesmos órgãos públicos. Esta seria uma fonte importante para o planejamento das ações de monitoramento, controle e fiscalização, que também podem ser integradas, assim como para orientar a capacitação de recursos humanos ou para subsidiar a pesquisa. Viabilizaria dados fundamentais para a Vigilância em Saúde — Ambiental, Sanitária, Epidemiológica. Facilitaria ainda outras iniciativas relevantes, ao possibilitar informações, por exemplo, sobre o consumo energético; contaminação das águas; produção, transporte e consumo de substâncias químicas; mapeamento de resíduos tóxicos. Seria também muito importante para agregar dados relacionados a acidentes e agravos à saúde, permitindo identificar correlações espaciais, com fontes de contaminantes, entre outros.

Esta abordagem integrada traria o benefício de fortalecer o poder dos diferentes órgãos públicos envolvidos e de potencializar suas capacidades e instrumentos de ação, como por exemplo: a concessão ou corte de financiamentos públicos, como já previsto na legislação ambiental; a experiência de negociação tripartite — empresários, trabalhadores e Estado — acumulada no Ministério do Trabalho; a capilaridade da rede do Sistema Único de Saúde e seu acúmulo no campo da vigilância em saúde, entre muitos outros.

Os Conselhos de Saúde, os de Meio Ambiente e a Comissão Tripartite Permanente do Ministério do Trabalho são mostras de que estas instituições estão forjando práticas democráticas de gestão. As audiências públicas e a disponibilidade dos EIA/RIMA para consulta e debate pelos interessados, previstos na legislação ambiental, poderão ser caminhos de ampliação do controle social dos processos produtivos, numa perspectiva mais abrangente.

Um dos condicionantes fundamentais para o desenvolvimento de políticas integradas de saúde, trabalho e ambiente seria, além da construção e difusão de uma concepção teórica que as embase, a capacidade dos atores envolvidos de compreender a complexidade sistêmica das relações em foco, numa perspectiva transdisciplinar e transetorial, reconhecendo que a meta da saúde e da qualidade de vida não se completa nem se esgota num Ministério, Secretaria, Departamento, disciplina ou grupo profissional isolados, mas pode avançar muito na medida em que se abra espaço para um diálogo entre instituições, técnicos especialistas e, particul

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